Micofenolato de Mofetila e Lúpus Eritematoso Sistêmico de Início Recente
26 de novembro de 2024
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A adição de micofenolato de mofetila ao tratamento padrão com prednisona e hidroxicloroquina em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico de início recente reduz a incidência de atividade da doença?
Dentre os diversos autoanticorpos encontrados em pessoas com Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES), o anti-DNA de dupla-hélice (anti-dsDNA) é reconhecido como causador de envolvimento orgânico, com especial relevância na patogênese da nefrite lúpica. Os níveis anti-dsDNA podem flutuar no curso da doença, e as recidivas clínicas frequentemente são precedidas por sua positivação ou por aumento em seus títulos. O tratamento do LES consiste no uso da hidroxicloroquina, prednisona e drogas modificadoras do curso da doença, sendo o micofenolato de mofetila (MMF) uma destas. O MMF é utilizado particularmente quando há envolvimento renal, tanto na fase de indução como na manutenção. Entretanto, não se sabe se o uso precoce do micofenolato de mofetila pode potencialmente prevenir surtos, contribuindo para um melhor prognóstico. Este estudo teve como objetivo avaliar se o uso precoce de MMF em pacientes com LES recém-diagnosticado com altos títulos de anti-dsDNA e sem envolvimento orgânico grave pode melhorar o prognóstico da doença em longo prazo.
Ensaio clínico randomizado
Multicêntrico (3 centros na China)
Aberto para os participantes, cego para os investigadores
Randomizado 1:1 por algoritmo específico de computador
Uma amostra de 58 participantes por grupo foi estimada para dar ao estudo um poder de 80%. Antecipando uma perda aproximada de 10%, 65 participantes em cada grupo foi o número requerido.
Pacientes com LES com anti-dsDNA positivo e virgens de tratamento incluídos entre 2018 e 2020.
Diagnóstico de LES pelos critérios de 2019 do Colégio Americano de Reumatologia, confirmado por 2 reumatologistas experientes
Idade entre 18 e 65 anos
Diagnóstico recente, sem qualquer tratamento prévio
FAN positivo em título ≥1/80
Anti-dsDNA positivo por ELISA ≥300 UI/mL e imunofluorescência com Crithidia luciliae ≥1/10
Envolvimento orgânico maior (neurológico, cardíaco, hepático, renal, pulmonar, muscular ou gastrintestinal)
Uso prévio de qualquer tratamento para o LES
Micofenolato de mofetila 500 mg 2x ao dia + hidroxicloroquina 5 mg/kg/dia e prednisona (0,5 mg/kg/dia inicialmente, seguida de desmame programado)
Hidroxicloroquina 5 mg/kg/dia e prednisona (0,5 mg/kg/dia inicialmente, seguida de desmame programado)
Primário: proporção de pacientes que entraram em atividade de doença (leve/moderada ou grave), de acordo com o índice SELENA-SLEDAI.
Secundários: proporção de pacientes com baixa atividade de doença na semana 96 (LLDAS); escore SF-36 inicial e ao final do tratamento (estado físico e mental); incidência de efeitos adversos; variações no SLEDAI; variação nas doses de prednisona.
MasculinoFeminino
MMF (n=65) x Controle (n=65)
Idade: 32 (23-44) vs. 32 (27-46) anos
Duração da doença: 4 (1-24) vs. 3 (1-12) anos
SLEDAI inicial: 10 (8-14) vs. 9 (6-11)
Envolvimento da doença:
Articular: 72,3% vs. 55,4%
Cutâneo (rash): 33,8% vs. 36,9%
Febre: 29,2% vs. 33,8%
Leucopenia: 38,5% vs. 52,3%
Trombocitopenia: 27,7% vs. 26,2%
Alterações laboratoriais:
Anti-dsDNA (U/mL): 642,4 vs. 563,8
C3 baixo: 69,2% vs. 47,7%
C4 baixo: 72,3% vs. 64,6%
O grupo controle teve mais episódios totais de recidiva do LES do que o grupo MMF (63,1% x 43,1%, RR 0,68 (0,49-0,96), P=0,02). Não houve diferença em relação às recidivas leves/moderadas, a diferença foi observada no número de recidivas graves (27,7% x 10,8%, RR 0,39 (0,17-0,87), P=0,01).
Mais pacientes do grupo controle evoluíram com nefrite lúpica: 9 (13,8%) x 1 (1,5%), RR 0,11 (IC 95% 0,01-0,85), P=0,008.
Não se observou diferença em relação à incidência de sintomas neuropsiquiátricos, trombocitopenia ou anemia hemolítica entre os grupos.
Uma análise de Kaplan-Meier demonstrou que a sobrevida livre de recidivas dos pacientes do grupo MMF foi maior do que a dos pacientes do grupo controle (HR 0,39 [IC 95% 0,18-0,86]) – Figura 1.
Não se observou diferença em relação à proporção de pacientes que atingiram o estado de baixa atividade de doença ao fim do seguimento (LLDAS), à variação do índice SLEDAI ou ao aumento da dose de prednisona entre os grupos.
Pacientes no grupo MMF demonstraram maior escore SF-36 em relação ao grupo controle, com melhora observada na dor e na função social.
Não houve diferença em relação ao número de efeitos adversos observados nos dois grupos. Os efeitos adversos mais frequentes foram infecções (33% no grupo MMF x 30,8% no grupo controle, RR 1,10 [IC 95% 0,67-1,81] P=0,7).
Figura 1. Análise de Kaplan-Meier de sobrevida livre de recidivas graves nos grupos controle (laranja) e MMF (azul). HR: hazard ratio (razão de risco). Fonte da imagem: You Y, et al. JAMA Netw Open. 2024. DOI: 10.1001/jamanetworkopen.2024.32131.
Em pacientes com LES de início recente e altos títulos de anti-dsDNA sem envolvimento orgânico grave, a associação precoce de MMF em dose baixa ao esquema hidroxicloroquina + prednisona reduziu o risco de atividade grave da doença, principalmente nefrite lúpica.
O estudo demonstrou benefício na prevenção de atividades graves do lúpus e de nefrite lúpica com uma droga que já está disponível, é amplamente utilizada e tem perfil de segurança bem conhecido.
Foi explorado um cenário que frequentemente gera dúvidas no cotidiano dos reumatologistas: a ausência de evidências objetivas de atividade grave da doença, mas com perfil laboratorial que é sabidamente associado ao maior risco (anti-dsDNA em altos títulos, C3 e C4 baixos). Assim, a pergunta do estudo é realmente pertinente.
A população do estudo foi bem caracterizada, com diagnóstico de LES bem definido e títulos de anti-dsDNA bastante elevados.
Amostra relativamente pequena, devido à utilização de critérios de inclusão restritos.
Tempo relativamente curto (96 semanas) para avaliar desfechos a longo prazo, especialmente em doenças autoimunes e determinar as vantagens e desvantagens do uso precoce de MMF.
O estudo foi conduzido com pacientes Asiáticos, e a possibilidade de extrapolação dos resultados (eficácia e perfil de segurança) para outras populações é incerta.
O estudo não foi duplo-cego, mas cego apenas para os observadores e aberto aos pacientes. Novos ensaios duplo-cegos placebo-controlados são necessários para melhores conclusões.
Autor do conteúdo
Marília Furquim
Referências
Públicação Oficial
https://app.doctodoc.com.br/conteudos/micofenolato-de-mofetila-e-lupus-eritematoso-sistemico-de-inicio-recente
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