Como Eu Faço a Prevenção de Cistite Hemorrágica Relacionada à Ciclofosfamida em Pacientes com Doenças Autoimunes e Vasculites Sistêmicas
12 de março de 2025
4 minutos de leitura
A acroleína, um metabólito da ciclofosfamida (CFF), tem potencial toxicidade para o epitélio da bexiga, com risco de cistite hemorrágica. Este risco pode ser reduzido com o uso do mesna, um quelante do metabólito urotóxico. A CFF é amplamente prescrita por reumatologistas, pneumologistas, nefrologistas e neurologistas, entre outros, para o manejo de manifestações graves de doenças autoimunes e vasculites sistêmicas. O uso profilático do mesna tem crescido na prática clínica, mas com evidência questionável e custos relativamente elevados.
Esta publicação, um posicionamento oficial da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), tem como objetivo fornecer recomendações sobre o uso racional do mesna com apoio na evidência científica disponível atualmente.
As recomendações foram elaboradas com base na opinião técnica de reumatologistas experientes das comissões de Lúpus Eritematoso Sistêmico e Vasculites Sistêmicas da SBR após uma revisão sistemática sobre o tema, conduzida de acordo com os guidelines PRISMA2 e da SBR3.
O mesna (2-mercaptoetanosulfonato de sódio) atua como um detoxificante local dos metabólitos urotóxicos da CFF, como a acroleína, a 4-hidroxifosfamida e o cloroacetaldeído. Após entrar na circulação, ele é rapidamente filtrado pelos glomérulos e sua concentração urinária é muito superior à sua concentração plasmática, de forma que a ação acontece localmente no sistema urinário. Assim, o mesna não protege ou interfere nos outros efeitos adversos da CFF (toxicidade hematológica, gonadal, gastrintestinal etc.).
Mesna pode ser administrado por via oral ou parenteral. A administração oral é mais conveniente, mas traz mais efeitos adversos gastrintestinais (náuseas e vômitos), menor biodisponibilidade e maior tempo para início da ação.
A meia vida plasmática do mesna é menor do que a da CFF, de forma que são necessárias administrações repetidas durante a meia-vida da acroleína para proteger o epitélio vesical de forma contínua.
A dose de mesna é calculada a partir da dose total de CFF, sendo 60% em caso de administração IV (3 doses de mesna correspondendo a 20% da dose de CFF cada) e 120% em caso de administração VO (3 doses de mesna correspondendo a 40% da dose de CFF cada).
Dose de mesna |
Protocolo oral |
Protocolo intravenoso |
Protocolo misto IV/VO |
1ª |
40% da dose de CFF 2h antes da infusão de CFF. |
20% da dose de CFF em bolus 15-30 minutos antes da infusão de CFF. |
20% da dose de CFF IV em bolus 15-30 minutos antes da infusão de CFF. |
2ª |
40% da dose de CFF após 2h da infusão de CFF. |
20% da dose de CFF após 4h da infusão de CFF. |
40% da dose de CFF VO após 2h da infusão de CFF. |
3ª |
40% da dose de CFF após 6h da infusão de CFF. |
20% da dose de CFF após 8h da infusão de CFF. |
40% da dose de CFF VO após 6h da infusão de CFF. |
Com base na revisão da literatura realizada, não há evidência suficiente para justificar o uso rotineiro do mesna para a prevenção de cistite hemorrágica e neoplasia de bexiga em pacientes com doenças autoimunes ou vasculites sistêmicas em tratamento com CFF.
As recomendações do EULAR/ERA-EDTA (Liga Europeia de Reumatologia/Sociedade Renal Europeia-Associação Europeia de Diálise e Transplante Renal) para o manejo de vasculites associadas ao ANCA4 sugerem o uso do mesna para a prevenção de cistite hemorrágica e câncer de bexiga em pacientes recebendo CFF, mas também sugerem hidratação como uma medida alternativa.
Uso do mesna em subgrupos específicos de risco:
Pacientes com alta dose cumulativa de CFF: o risco de cistite hemorrágica aumenta de forma proporcional à dose cumulativa de CFF (HR 1.24 para cada 10g de aumento na dose cumulativa). Além disso, o risco de câncer de bexiga também se relaciona à duração da exposição e dose cumulativa de CFF (5-10% em 5 anos em pacientes que receberam ≥ 30 g de CFF). Mesna pode ser uma alternativa a estes pacientes, considerando seu bom perfil de segurança.
Pacientes com restrição à sobrecarga volêmica: a administração de grandes volumes de fluidos é considerada o cuidado-padrão para a proteção urotelial em pacientes recebendo CFF. Assim, alguns pacientes podem se beneficiar da terapia com mesna como uma alternativa à hiper-hidratação intravenosa, especialmente aqueles com comorbidades relacionadas à sobrecarga volêmica como insuficiência cardíaca, doença renal crônica e ascite.
Pacientes com bexiga neurogênica: pacientes com retenção urinária ou esvaziamento vesical completo estão sob risco teoricamente aumentado de toxicidade por CFF. Assim, o mesna pode ser considerado como uma medida profilática nestes casos, apesar de não haver evidências que confirmem a bexiga neurogênica como um preditor de cistite hemorrágica em pacientes recebendo CFF.
Pacientes em terapia anticoagulante oral: em pacientes com cistite hemorrágica, a taxa de mortalidade decorrente de sangramento incontrolável é de aproximadamente 4%, e a morbidade decorrente do sangramento excessivo é muito alta. Assim, em pacientes sob terapia anticoagulante contínua recebendo CFF, o uso do mesna pode ser considerado.
Pacientes com doença renal em estágio avançado: apesar da disfunção renal teoricamente aumentar o risco de toxicidade sistêmica pela CFF, não parece haver risco aumentado de toxicidade vesical devido à menor taxa de eliminação da CFF e de seus metabólitos. O mesna necessita de filtração glomerular ativa e secreção tubular para chegar à urina e, portanto, seu uso em pacientes com disfunção renal significativa parece não ser benéfico. Assim, não há conclusão ou evidência sobre o uso de mesna em pacientes com doença renal crônica avançada em terapia com CFF.
Conclusão/Posicionamento da SBR:
Não há evidência suficiente na literatura médica que justifique o uso rotineiro de mesna para a profilaxia de cistite hemorrágica e câncer de bexiga em pacientes com doenças autoimunes e vasculites sistêmicas em tratamento com CFF.
Entretanto, o uso do mesna pode ser considerado em casos selecionados, como em pacientes com altas doses cumulativas e com maior risco de toxicidade vesical por CFF, como aqueles com restrição à hiper-hidratação (como em casos de insuficiência cardíaca ou renal, por exemplo), bexiga neurogênica e em uso de anticoagulantes orais.
Autor do conteúdo
Marília Furquim
Referências
Públicação Oficial
https://app.doctodoc.com.br/conteudos/como-eu-faco-a-prevencao-de-cistite-hemorragica-relacionada-a-ciclofosfamida-em-pacientes-com-doencas-autoimunes-e-vasculites-sistemicas
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